Mal Viver / Viver Mal
Uma entrevista a João Canijo
por Daniel Ribas
Nas últimas duas décadas, o nome de João Canijo é essencial para entender o cinema português contemporâneo. Autor de onze longas-metragens de ficção e cinco documentários, os seus filmes revelam as forças subliminares que atuam sobre e moldam o imaginário português e contemporâneo. Ao longo destas décadas, o realizador perscrutou as mais sórdidas e turbulentas transformações da sociedade portuguesa e das contradições históricas e sociais que essas transformações provocaram. Procurando mapear um Portugal diverso e marginal, estes filmes pretendem atestar como as famílias são o lugar conturbado das mudanças sociológicas, onde a violência paira como instrumento de poder e conflito.
Desde a vila industrial de Sines em Sapatos Pretos Pretos – passando por uma comunidade portuguesa em França (Ganhar a Vida), uma casa de alterne (Noite Escura), uma aldeia transmontana (Mal Nascida) – até a um bairro periférico de Lisboa (Sangue do Meu Sangue)estes filmes falam sobre a periferia como lugar onde as mudanças económicas e sociológicas convivem com tradições de violência patriarcal. Neste percurso, João Canijo tem-se aproximado também de uma busca pelo real quotidiano, procurando aprimorar um método de trabalho com as suas atrizes e os seus atores, de forma a provocar um contágio com o real. Este método afirma também o lugar que o realizador ocupa no cinema contemporâneo e na construção de uma mise-en-scène que explora a performance das cenas e que deixa a câmara como observador atento desse real. É também por isso que estes filmes ensaiam uma confusão entre ficção e documentário, que é marca do trabalho do cineasta. confusion between fiction and documentary, which is the authorial mark of his work.
Projeto que culmina a sua obra, Mal Viver / Viver Mal(2023) é um díptico que coloca todas estas dimensões em jogo, centrando-se num hotel e na pulverização da unidade de espaço e de tempo, transformada em dois filmes, com ângulos complementares: a história da família que governa o hotel (Mal Viver) e as histórias dos clientes que usufruem deste espaço (Viver Mal).If the first film was built from the director’s experience and from his work with its actors, the second one is an adaptation of three plays by August Strindberg: Brincar com o Fogo, O Pelicano e Motherly Love. The films feature an ensemble cast of actors who have shone brightly in Portuguese film and television panorama: Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Vera Barreto, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral and Leonor Vasconcelos.
Quando apresentas os teus filmes, sugeres sempre que eles partem de uma premissa essencial. Neste novo projeto, qual foi essa premissa de partida? E qual é a relação com as premissas dos outros filmes?
Este projeto parte de um conceito fundamental: a ansiedade. Isto é, como a ansiedade pode impedir o amor; e a expressão desse amor pode impedir de viver. É a ansiedade que impede uma das protagonistas de ter uma relação normal com a filha: a ansiedade em relação à responsabilidade de ter de a criar. A ansiedade de ter de a amar, impede-a de amar.
Essa premissa vem também na sequência dos teus filmes anteriores.
Há uma frase do Ingmar Bergman que para mim se tornou muito importante (li-a aos vinte anos e só a percebi vinte anos depois): um filme tem de partir de uma ideia que esteja presente em cada cena e em cada plano. Só compreendi isso completamente no Sangue do Meu Sangue. Esta conceção do cinema não significa que tenha de ser evidente, mas é fundamental que haja uma ideia que conduza os filmes. E, a partir de Sangue do Meu Sangue todos eles começam por aí. Por exemplo, no Fátima, partimos de um paradoxo entre a procura do transcendente e a natureza humana. Mas o Fátima tinha também uma condição específica: um contexto em que pudéssemos ter um grupo de mulheres juntas 24 horas sobre 24 horas. Depois de ter descoberto a situação – uma peregrinação a Fátima – descobri o tema para a situação.
O teu processo de construir um filme é bastante complexo. Depois da tal premissa que já falámos, fazes uma organização da estrutura dramática – alguns dos teus filmes são adaptações livres de tragédias gregas, por exemplo. Neste novo projeto há também uma força motriz: o dramaturgo August Strindberg, e o seu sucessor no cinema, Ingmar Bergman.
Quando utilizei os trágicos gregos, e a sua estrutura dramática, fi-lo de uma forma mais ingénua, que tinha a ver com alguma insegurança e com a perceção de que aquela estrutura dramática não falharia. Agora já não tem nada a ver com isso. Nos últimos anos, fui chegando à conclusão de que o Bergman é cada vez mais importante para mim. Não tanto em termos formais, mas mais na forma como trabalha o conteúdo. E como toda a gente sabe, o Strindberg era o mestre espiritual do Bergman. Como a ansiedade tem tudo a ver com o Bergman, e face à relação com o Strindberg, eu fui ler o Strindberg todo e deu-me bastantes ideias. E no fundo confortou-me. E depois, quando apareceram os clientes (a segunda parte do projeto), numa fase posterior, eu achei que fazia todo o sentido que fizesse adaptações livres do Strindberg.
Outro pormenor do teu processo é, claro, algo que já tentas desde o Ganhar a Vida e que terá tido a sua implementação mais justa no Sangue do Meu Sangue, que é o teu trabalho com os atores e com a forma como eles são “contagiados” (palavra tua) pelo real.
Sim, isso sempre foi assim e o contágio com o real é determinante para a construção da personagem por parte de um ator. No entanto, neste último projeto isso não foi necessário, porque o real é o interior deles. Há a persona e há a pessoa: e o real, neste caso, é muito a pessoa deles, não é a persona. Portanto, a pesquisa foi aproximar essa ideia das atrizes.
Mas há depois a parte seguinte, muito importante no teu processo que é o trabalho do texto com os atores.
É, na verdade, a criação do texto com os atores. Este filme tem dois processos de trabalho muito distintos. No caso do Mal Viver, há uma maior manipulação porque já sabia onde queria que as atrizes chegassem, mas queria que elas chegassem à maneira delas. Eu tinha várias ideias já estruturadas e mesmo as cenas ou frases chave já existiam. Entretanto, houve também uma pesquisa terapêutica: passei por um processo para me lembrar de coisas que não me lembrava, ou mesmo que bloqueava, da minha vida pessoal. Esse trabalho foi muito importante para a estrutura do argumento. Frequentei, durante mais de um ano, sessões de terapia (sem aldrabar a terapeuta: ela sabia para o que era). E a partir daí saíram muitas coisas e o argumento estava muito organizado. Por isso, houve alguma manipulação para chegar ao tema da ansiedade. No Viver Mal, o processo foi completamente diferente: partiu das peças do Strindberg. Por isso, passamos pela desconstrução das peças e de as adaptar às atrizes que eu tinha. Eu não escrevi diálogos nenhuns. Eles saíram todos dos ensaios. Talvez no Mal Viver existam alguns diálogos que não são bem escritos, mas são reminiscências.
Esse processo exige que estejas a trabalhar com os atores muito tempo antes das rodagens. Isso é parte fundamental do teu método.
Não é só o meu método, também é do mestre John Cassavetes e do Mike Leigh, que fazem o mesmo. O Shakespeare fazia o mesmo e o Strindberg, no prefácio do Menina Júlia, diz o mesmo. É desse trabalho que nasce o argumento. Não são bem ensaios: são discussões com os atores, prolongadas, que são todas gravadas e daí vão nascendo as ideias para compor as cenas. No caso do Viver Mal, as cenas já existiam mais ou menos porque estão nas peças; no Mal Viver, elas também existiam bastante na minha cabeça e os ensaios existiram para compor o argumento. Depois dessas discussões, há um intervalo grande, em que se faz um argumento, roubado de tudo que foi dado generosamente nos ensaios. E depois há uma improvisação sobre as cenas já escritas. Daí é que saem os diálogos finais. Nos filmes não há improvisação.
Tu tens um trabalho árduo de transcrição de entrevistas e na montagem de um argumento a partir delas.
Eu tenho alguns assistentes para me ajudar na transcrição, mas depois eu faço a montagem dos textos. No Sangue do Meu Sangue , fui eu que fiz sozinho e é um trabalho insano. No caso do Strindberg, antes de ficar completamente esquizofrénico, as peças eram sempre biográficas e as situações passavam-se com as cenas da vida real dele, de uma maneira muito perversa e muito manipuladora. Há um monólogo que se chama A Mais Forte, que é a situação da mulher dele quando descobre que ele anda com outra atriz, só que, mauzinho como era, pô-las a fazer o papel inverso. E quando eu descobri isto – eu conhecia o Strindberg, mas não conhecia estes meandros –, eu perdi o pudor.
Tu costumas dizer que trabalhas com atrizes porque achas que as atrizes são muito melhores do que os homens.
São muito mais generosas e têm muito mais capacidade de exposição, de entrega e disponibilidade.
Podes falar um pouco mais sobre isso? E neste filme em especial, trabalhas com várias gerações de atrizes. E todas elas estrelas do cinema e do audiovisual português. Rita Blanco, Beatriz Batarda, Anabela Moreira, Leonor Silveira e também atrizes muitos jovens, como a Madalena Almeida.
Elas têm generosidade, inteligência e a sensibilidade de poder dar alguma coisa. Eu trabalho com as mesmas pessoas e fui descobrindo algumas atrizes novas, mas voltei sempre às antigas. E elas no fundo são sempre as mesmas. Por exemplo, trabalho pela primeira vez com a Leonor Silveira, mas conheço-a desde muito jovem e sempre fomos amigos. São as atrizes de que eu gosto! O trabalho com elas é muito intenso, muito produtivo, muito tormentoso e às vezes infernal. Eu sei que, cada uma à sua maneira, elas me vão permitir roubar muita coisa. E depois vão entrando na família.
Uma das coisas que passa ao lado dos espectadores que não entendam o português de Portugal é a forma como tu consegues sempre incorporar nos teus filmes uma certa linguagem do dia-a-dia, do quotidiano, popular.
onsigo sempre porque isso vem dos ensaios. No Noite Escura, as cenas com as alternadeiras são a realidade. São cenas que se passaram com aquelas raparigas no seu trabalho. Não há nada inventado. É pesquisa e roubo à realidade. Interpretado pelas próprias. Nunca é invenção minha e acho que é o que se deve fazer: limito-me a roubar aquilo que me interessa. No Mal Viver, há frases e situações que são roubadas do passado, que me vieram muito da terapia. Quando o Philip Roth morreu, saíram algumas frases dele e ele disse algo como “a terapia não fez grande coisa pela minha neurose, mas fez muito pela minha escrita”. As frases coloquiais são as frases que saem visceralmente daquelas situações de exposição e generosidade das atrizes quando estamos a discutir as cenas. E depois nas improvisações. E claro que depois eu faço a seleção.
Algo que também é importante em todos os teus filmes – talvez o Fátima, esteja fora disso porque é um filme sobre uma viagem –, é o lugar onde eles acontecem. Por isso, por que razão decidiste fazer um filme num hotel?
A escolha do hotel à partida foi muito simples e prática. Depois do inferno que foi o Fátima, queria um lugar único. E depois pensei – talvez um pouco influenciado pelo Strindberg, embora ele não tenha nada num hotel – que talvez fosse interessante utilizar um hotel já decadente, já sem viabilidade (não é o caso real, mas é o que aparenta). Foi, por isso, muito cedo que a ideia do hotel apareceu.
Mas essa tua ideia original, relacionava-se com os donos do hotel a tentar sobreviver num hotel decadente e não com os clientes.
A ideia era as donas do hotel resignadas com a decadência inevitável do hotel porque estão também resignadas ou conformadas à decadência inexorável da vida infernal que têm juntas. Os clientes apareceram por razões práticas, de montagem financeira do projeto, e aí rapidamente se percebeu que aquilo dava um outro filme. O Viver Mal não tem um tema – quer dizer, pode ter algo como “amores desgraçados” ou “amores perversos” –; o que tem é um valor formal, que depois se mistura com o Mal Viver: o mesmo espaço, o mesmo tempo. E foi essa ideia que arquitetou aquilo tudo. Mas é uma construção mais formal do que temática.
Essa ideia formal relaciona-se com a experiência feita no Sangue do Meu Sangue, no qual algumas cenas incluem duas histórias paralelas no mesmo plano.
Sangue do Meu Sangue era para ser também feito em dois filmes, como neste. As cenas dentro da casa da família eram as mesmas só que filmadas de maneira diferente. Mas não houve tempo para haver mais duas semanas de rodagem, no mínimo, que era o que me permitia fazer duas versões de cada cena do interior da casa, que apesar de tudo são mais de 25% do filme. Portanto, aí acabou-se por chegar à solução de juntar os dois em um. Mas eram para ser dois.
Mas, de certa forma, o Mal Viver já vive um pouco dessa aprendizagem do Sangue do Meu Sangue, porque as histórias dos clientes estão sempre em fundo. Há sempre uma relação entre o primeiro plano e as situações que acontecem atrás.
No Sangue do Meu Sangue, as cenas em comum seriam exatamente as mesmas, só que o significado delas seria completamente diferente, num filme e noutro. Neste não: o que conta é o mesmo tempo e o mesmo espaço. E, portanto, as personagens [as donas do hotel] não estão sozinhas. Na verdade, elas até podiam estar sozinhas: isto podia ser um The Shining, sem o terror. Elas podiam estar num hotel vazio. Mas o facto de haver clientes faz aquilo ganhar uma outra dimensão dramática.
Uma das características essenciais dos teus filmes é que, pelo facto de construíres cenas em espaços muito fechados, se sente uma intensa claustrofobia e uma violência psicológica que dela deriva. Os teus filmes são sempre muito violentos.
Trata-se da claustrofobia de gente que vive fechada, que cria a sua própria claustrofobia, no caso do Mal Viver. E a claustrofobia é violenta. Aquelas relações contidas estão prestes a explodir em violência em qualquer momento. Mas isso vem da ansiedade.
Certo, isso vem da ansiedade, mas também vem de outro pormenor, que tu já falaste no passado, e que continua, embora mais diluído, no Mal Viver: a vida das famílias na cultura portuguesa ainda é muito devedora da ideologia castradora que vem do regime ditatorial muito longo.
Neste projeto é mesmo uma ideia: todas as famílias são disfuncionais. E as famílias são extremamente violentas dentro delas. No fundo é: a ansiedade da avó deu cabo da vida da filha; a ansiedade da filha vai dar cabo da vida da neta. E isto é transmitido diretamente de avós para netas e depois para bisnetas. E é claustrofóbico porque não saem delas próprias.
Para além disso, não evitas as cenas de violência física. Há muito cinema que colocaria a violência em elipse: tu não evitas.
A cena de violência no Mal Viver é uma criação da Rita Blanco. A violência ia ser mais à Bergman, mais à Sonata de Outono [1978], que era o que estava previsto. Uma violência mais contida, mais psicológica.
Nestes filmes, vê-se que as mães têm um poder de manipulação da vida das filhas.
Quando vivem debaixo de uma ansiedade potenciada pela existência dos filhos, porque a ansiedade passa a ser não só a sua própria vida, lidar com a sua própria vida, mas ter a responsabilidade de lidar com a vida dos filhos, as mães tornam-se muitas vezes nuns monstros incapazes de serem mães. Isso é o paradigma da ansiedade. Não há maior tradução da ansiedade do que a ansiedade de uma mãe em relação aos filhos. No Sangue do Meu Sangue propus a ideia do “amor incondicional”: uma mãe que arrisca perder uma filha para a salvar. Não há demonstração de amor incondicional maior do que esta. Aqui é o contrário: uma mãe que vive de tal forma em ansiedade que se torna absolutamente incapaz de ser mãe, embora seja a mãe perfeita. A ansiedade faz com que o ser mãe se torne numa tarefa, que é necessário cumprir. Isto passa das bisavós para as avós, das avós para as mães, das mães para filhas e por aí fora. É interminável e todas elas vão ter uma vida difícil. E foi por isso que eu fiz terapia: para perceber e depois poder passar para as personagens, para perceber o que é me tinha acontecido. Eu tinha bloqueado tudo. Para perceber como é que uma ansiedade de uma mãe pode destruir a relação com a filha e pode destruir a própria relação da filha com a vida, eu tive de tentar perceber como isso tinha acontecido comigo. Essa foi a minha pesquisa. Não foi a pesquisa das atrizes. Nós só podemos falar daquilo que conhecemos, daquilo que nos diz respeito. E isso é o que Bergman fez e é por isso que o Bergman me está cada vez mais próximo.
Mas essa questão da mãe e do controlo da mãe sobre a vida das filhas, que é um controlo muitas vezes irracional, é uma coisa que também já está noutros filmes: Noite Escura, Ganhar a Vida, Mal Nascida.
Sim, é verdade, mas provavelmente de uma forma inconsciente. Eu sempre tive um fascínio pela Electra [personagem das tragédias gregas de Sófocles e Eurípides, que se tornou também muito relevante ao longo da história do teatro]. Um dos meus primeiros filmes – cujo título é Filha da Mãe – já era uma adaptação da Electra. Eu tinha uma obsessão pela personagem, sem saber exatamente porquê. Li duas coisas há muito tempo – li umas entrevistas ao Bacon, do David Sylvester e depois li o livro mais teórico do Ernst Gombrich. E todos aqueles pintores, pintam com o que lhes vai na alma. E no fundo era o que Bergman fazia. É o que pode dar sentido às vidas desgraçadas que temos e que nos pode salvar do suicídio. No fundo é isso. E o próximo vai ser completamente isso.
Desde o Sangue do Meu Sangue, que o teu tipo de cinema, que já se vinha tornando assim, é um cinema de observação do real. Planos longos, movimentos de câmara muito suaves. Há uma vontade que a cena viva por ela própria, e da performance dos atores.
A ideia, à partida, é evitar a ilustração; ou seja, evitar a imposição de um ponto de vista, visto que isso é um paradoxo, porque mesmo que tentes impor, a interpretação do espectador vai ser sempre diferente. Essa é uma pesquisa que faço e que continuo a fazer. (Depois encontrei finalmente uma pessoa [trata-se de Leonor Teles, a diretora de fotografia destes dois novos filmes], muito mais nova do que eu, mas que fala a mesma língua. E temos os mesmos mestres espirituais, de forma que foi verdadeiramente uma colaboração artística.) É uma pesquisa formal que não está acabada e isto começa muito pela formalidade das coisas. Há uma questão formal que tem a ver com o Bergman e as várias leituras que ando a ter ultimamente, que é fazer filmes sobre coisas que me digam profundamente, que me façam profundamente sentido e que me sejam profundamente importantes. Como no Bergman. Por isso as situações são, não digo biográficas, mas vitais para mim. Isso foi, nos últimos cinco anos, a minha redescoberta do Bergman.
O filme funciona quase como uma terapia ou uma catarse do realizador.
Uma catarse e uma capacidade de exposição, que não se tem quando se é novo. No fundo, tem a ver com a frase de uma atriz, que eu li há muitos anos, que dizia que “representar é ser mais sério do que na vida”. No fundo, é isso mesmo: tentar fazer os filmes mais sérios do que na vida. Isso é o tema, a formalidade é outra. São duas coisas distintas.
Este filme tem também uma relação com uma peça de teatro que tu viste que também era centrada num hotel.
Isso são aquelas coincidências da vida e do destino que fazem com que outras pessoas que tiveram ideias parecidas te confortem e te deem segurança. Pessoas que admiras que tiveram ideias parecidas e que permitem que diga “era exatamente isto que eu queria fazer e funciona”. Trata-se do trabalho de um encenador australiano jovem, Simon Stone. Quando descobrimos o hotel, tive a ideia imediatamente de pôr as cenas nas janelas dos quartos. Depois vi que ele fez uma encenação de uma série de peças do Strindberg [Hotel Strindberg, 2018] – por coincidência, são algumas das que eu usei – e a fazer exatamente isso, utilizando um dispositivo dramático de um hotel. Não me inspirei nele: ele confortou-me.
Como foi essa procura e descoberta do hotel?
Nós queríamos um hotel que não estivesse no seu apogeu, que estivesse decadente, mas que não fosse uma ruína. E tive uma assistente que correu uma série de hotéis do sul ao norte de Portugal e das suas fotografias, fez-se uma seleção. No entanto, havia já um hotel que estava escolhido, só que eu tinha medo de que esse hotel já não existisse ou não correspondesse à ideia. Viram-se vários hotéis e deixou-se o hotel que estava escolhido para o fim. E quando se chegou ao hotel que estava escolhido, ele era uma viagem no tempo, não tinha mudado, era tal e qual aquilo que me lembrava, quando ia aos fins de semana tomar banho à piscina desse hotel com os meus pais, no princípio dos anos 1960. Não havia nada a fazer, era mesmo aquele. O hotel está muito bem conservado porque o dono é arquiteto e é filho do arquiteto que fez o hotel, portanto, ele honra a memória do pai e mantém o hotel tal e qual. Que agora é moderno outra vez.
Qual é a tua relação com o cinema português e com o cinema em geral. Sabemos que há autores de que gostas, como o Bergman. Foste assistente do Manoel de Oliveira. Em Mal Viver, aparece uma cena de um filme do João César Monteiro.
O César não é um ídolo meu. Eu era amigo do César. E achava-lhe imensa graça. Ele tinha um sentido de humor verdadeiramente extraordinário e a gente dava-se muito bem. Não é bem uma homenagem, é mais “olha, o César está vivo”. E é o meu filme preferido dele [A Comédia de Deus]. Ninguém ensina nada a ninguém, mas há umas coisas que o Sr. Oliveira disse que eu fixei. Em primeiro lugar, quando se estiver a fazer seja o que for em termos de arte, temos de se ser sérios connosco próprios. E o Sr. Oliveira foi sempre de uma extrema lealdade comigo. E eu com ele. Mas não tenho mestre, nem referências no cinema português. Os meus mestres, entretanto, mudaram um pouco – porque agora já sou eu à procura dos meus métodos. Mas são fundamentalmente o Cassavetes e os seus discípulos chineses. Quando descobri o Cassavetes, no princípio dos anos 1990, foi uma epifania, especialmente quando vemos a cena da audição da stripper em A Morte do Apostador Chinês. A rapariga está a fazer a audição e não vemos a cara dela, nem a cara do Ben Gazzara. Vêem-se as costas do Gazzara e as pernas da rapariga. E está lá tudo. É o contrário da ilustração. Sem se ver nada, vê-se tudo. E os chineses vão dar ao mesmo: especialmente o Hou Hsiao-hsien e o Wong Kar-wai.